-Nome?
-Paulo
-Profissão?
-Médico
-Idade?
-25 anos
-Recém-formado?
-Sim.Há oito meses
-Pretende exercer a profissão no Brasil?
-Não sei... talvez com o tempo...Não conheço a língua.
-Então, em lugar de médico, vamos colocar :agrônomo.
Assim posso fornecer o visto imediatamente.Sabe como são essa coisa,não? Quotas de profissões, instruções confidenciais de imigração, besteiras ...sem importância. Em todo caso, assim ficará cem por cento dentro das normas legais.
O cônsul brasileiro falava um inglês claro e compreensível e sorria para mim como se fora um ginasiano que,acumpliciado com um amigo, acabasse de enganar o professor.
-Obrigado. Mas gostaria de evitar uma declaração falsa que futuramente viesse a incriminar-me Não entendo nada de agronomia...posso sair mal. Não saberei como explicar às autoridades...Para ser sincero, acho uma solução pouco recomendável .
Enquanto eu falava, pela minha cabeça desfilavam todas as experiências anteriores com funcionários graduados de diversos países e de vários governos, inclusive os de minha própria pátria.
“Pois sim...este homem está me provocando. Quer me instigar a fazer uma declaração falsa...quem sabe para quê? Quer observar minha reação...
Redobrei meus esforços para enfrentar aquele homem aparentemente tão sincero mas, na realidade , um verdadeiro “agente provocador”
Porém, ele não me deu muita importância. Veio para bem perto de mim.
- Meu filho, este negócio de agrônomo não vai ser problema. Assim que chegar, quando estiver no Brasil...no Brasil...
Parou. Percebi que procurava a palavra adequada. Falava um inglês carregado, mas fluente .Ficou pensando e depois de alguns instantes virou-se para o auxiliar:
- Castro ! Como você diz em inglês “ lá no Brasil você dá um jeito”
Castroaparentava ter uns 50 ou 55 anos. Gordo,usava óculos grossos e era totalmente calvo. Virou-se para mim:
- Sr Paulo, eu falo bem o inglês, mas prefiro o alemão.Posso mesmo considerar o alemão como a minha segunda língua materna,pois nasci no sul do Brasil, onde predominou a colonização alemã. Meu pai era filho de alemães e freqüentei escoilas onde parte dos exames era feita neste idioma. Mas “ dar um jeito” não posso traduzir para o alemão...e tampouco para o inglês.
Bateu no meu ombro, levou-me para um sofá e sentou-se ao meu lado.
- Escute com tenção. Vamos ver se consigo traduzir. Você é médico, não é?
- Sou.
- Vai declarar que é agrônomo?
- Vou.
Acha que será uma declaração falsa ou, digamos, uma afirmação sem fundamento?
- Mais ou menos.
- Meu caro Paulo, não se trata disso, absolutamente.Apenas queremos dar um jeito (facilitar) para que você possa viajar sem mais delongas. Evitamos somente que perca seu tempo e possa embarcar logo. Seu visto ficará pronto à tarde.
Percebi então que não se tratava de provocação , mas ainda não sabia que acabara de falar com dois representantes de um povo onde as leis são reinterpretadas, onde regulamentos e instruções centrais do Governo já não decretados com um cálculo prévio de percentagem em que serão cumpridas, onde o povo é um grande filtro das leis e os funcionários, pequenos ou poderosos, criam sua própria jurisprudência. Ainda que esta jurisprudência não coincida com as leis originais , conta com a aprovação geral, se é ditada pelo bom senso.
O cônsul José de Magalhães e Albuquerque é um desses indivíduos que, de acordo com sua própria convicção, modifica ou simplesmente ignora os parágrafos que não coincidem com sua opinião particular
Não sugeriu a mudança de médico para agrônomo com a preocupação de ganhar dinheiro ou algum presente. Era milionário de terceira geração, cônsul por esporte e passa-tempo. E não mandou que me desse o visto imediatamente para se livrar de mim: contava com mais de trinta funcionários para me chutar, conversar, desanimar, enfim – para me despachar.
O Cônsul Geral dos Estados Unidos do Brasil, mandou dar um jeito. Apesar das leis de imigração, das quotas, das profissões preferenciais, ele sabia que naquele ano entraria no Brasil, pelo antigo, comprovado e incontrolável sistema de nascimentos naturais, mais de dois milhões de seres, sem consultar conselhos, cônsules ou embaixadores; sabia também que esses dois milhões de “recém-chegados” não teriam profissão recomendável, dinheiro, capacidade imediata de produção e... nem mesmo sabiam falar
Meu cônsul talvez estivesse pensando no problema do aumento constante da população. Mas não estava disposto a pechinchar com mil ou cinco mil almas, quer estas se transformassem em médicos, quer se transformassem em agrônomos ou guarda-nortunos.
Para ele o problema não existia, pelo menos nesses moldes mesquinhos, e estava disposto a assumir, perante o mundo a responsabilidade por sua atitude liberal. Sabia também que não correria grandes riscos, pois jamais existirá um brasileiro, incluindo o próprio legislador das leis de imigração que não compreenda e não apóie este “jeito” consular.
Peter Kellemen (húngaro)1961