quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Panem et Circences


Não fose o autor e a data poderíamos jurar que é atual ou vidência.


-Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio,fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;

um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai;

um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem caráter, havendo homens que, honrados na vida íntima,
descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverossímeis.

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo;

este criado de quarto do moderador;

e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.

A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.

Partidos sem idéias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos atos, iguais um aos outros como metades do mesmo zero, e não se amalgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."

Guerra Junqueiro, 1896.

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