quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Feiras antigas -Trois petites notes de musique

Da Aurora da minha vida, tem tantas lembranças que pouco a pouco tomam corpo e se exibem, se sobrepõe uma as outras querendo ser descritas. Lembro dos dias de feiras semanais e fico a imaginar as feiras medievais com os seus vendedores,trovadores,saltimbancos,menestréis e atrativos cênicos e teatrais, que fascinavam a multidão de curiosos, que os aplaudiam e traziam notícias e novidades dos ocorridos em outras aldeias percorridas.

Na Aurora da minha vida, tais fatos são símiles e embora com menor intensidade,ou até talvez maior glamour,quem sabe, que as feiras do medievo, pois afinal eu os vi,vivi e eles têm em mim, ainda hoje, os reflexos e lampejos dourados e encontram-se protegidos, armazenados nas profundidades do meu ser e fazem parte da base da minha formação e curiosidade de infância.Não têm o glamour das feiras medievais exploradas pela TV,mas têm a alma Shaskepereana, guardada no tempo em que Berta ainda fiava.
Eu,esperava com ansiedade os dias de feiras,dias que meu pai ocupava muito mais tempo entre a loja e a padaria,pois não fechava ao meio dia pro almoço, e eu podia vagabundear sem o seu controle absoluto.As vezes,dormia em baixo do balcão sobre as peças de tecidos,outras vezes,enquanto a freguesia,nessa época ainda não usava-se o termo clientela,comprava linho irlandês ou casemira inglesa para exibir nas festas da “kermese” ,e eu encostava os seus cavalos, ali amarrados,na calçada, que era bem alta , montava e saía para dar um passeio.As primeiras vezes que o fiz,imagino o susto do dono a procurar o cavalo que sumira,todos ficaram em polvorosa.Mas depois se acostumaram e meu pai os tranquilizava:meu filho deve ter pego o cavalo pra fazer um passeio,mas logo estará de volta.Na infância não temos noção de tempo ou distância.Quando me “aprecatava”tinha ido mais longe do que queria e devia,nem sei se devia mas afinal sempre escapava, e quando voltava os via atônitos e aflitos a me procurar.
Havia um atrativo especial nos dias de feiras que eu, em toda a minha inquietude,(ainda não existia o termo hiperatividade) não me cansava de esperar: era o caminhão que trazia os feirantes.O que me atraia não eram os feirantes em si,embora tantas figuras prosaicas ou aquelas centenas de galinhas e angolistas, atadas com a cabeça para baixo ou aqueles homens calvos, com um lenço amarrado na cabeça e em cada ponta do lenço ,encontrava-se amarrada uma pedrinha.E o café que traziam:Grão preto,bem tostado e açucarado, pareciam excrementos caprino só faltava moer,(será que o Kopi luwak é semelhante ???).Farinha,feijão,ovos de pata,peruas,angolistas e escutava a voz da sabedoria popular dizer pra mocinhas e senhoras:--vocês não podem comer esses ovos de patas e angolistas eles são muito “carregados,faz mal pra regras”.Lembro das enormes bandejas com pirulitos de mel, que nunca soltavam do papel,quebra-qeixos e cocadas:tanta coisa nova.E o velho do rapé, com aquela grande guampa de touro cacaracú,cheio de tabaco torrado e moído bem fino .Era só botar um pouco na “tabaqueira anatômica*” aspirar e espirrar.Naquele tempo já existia também um pó branco a base de cânfora,não era o pó branco de hoje,dos “maradonas” da vida,aqueles não levava a dependência.E as “barraquinhas” com aquelas latas de margarina como fogareiros improvisados,onde fumegava café adoçado com açúcar preto,eram um “garapão” Existia caldo de cana , sucos (capilé) que eram uma tintura vermelha (morango puro.HA HÁ HÁ) e para gelar havia uma raspador de gelo,semelhante a uma cipilhadeira,com uma tampa que fechava a parte superior,onde ficava depositado o gelo raspado. Eles vendiam comida aos feirantes,sem a preocupação com a malfadada ANVISA de hoje.Todos comiam: ninguém adoecia, ninguém morria e como num conto de fadas,todos eram felizes e nem sabiam.


Mas, o atrativo principal era o caminhão ,lembro bem dele: atrás da cabine tinham várias cornetas, em variados tamanhos.Eram elétricas,semelhantes a essas buzinas a ar, faziam a escala musical. No braço do volante,abaixo da direção, tinha um teclado, semelhante ao de um acordeom, e ele tocavam com “maestria” musicas variadas.Entrava na cidade tocando e se despedia tocando,como uma caixa musical das feiras medievais,só faltava o macaquinho.Como me encantava.Ficava esperando a chegada e a saída só pra ouvi-lo .Ainda hoje, ouço o eco dessa musica reverberando nas minhas lembranças... com se esse som ,perdido no universo tocasse unicamente para mim.
“Trois petites notes de musique
Ont plié boutique
Au creux du souvenir
C'en est fini de leur tapage
Elles tournent la page
Et vont s'endormir

Mais un jour sans crier gare
Elles vous reviennent en mémoire

Toi, tu voulais oublier
Un p'tit air galvaudé
Dans les rues de l'été
Toi, tu n'oublieras jamais
Une rue, un été

De mon enfance
Jamais... !

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* A tabaqueira anatômica: fossa triangular formado na mão,quando o polegar encontra-se estendido:ali surge uma cavidade que recebe curiosamente esse nome, porque ali se depositava o tabaco ou rapé para aspirar.

2 comentários:

Mara disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mara disse...

O livro "O Perfume - A história de um assassino" estragou qualquer visão (ou melhor, olfato) que eu poderia imaginar de feiras da Europa na Idade Média, Renascença, etc.
Imagino que as feiras do Oriente devem ser bem aromáticas e interessantes...